fonte: MedScape
Pacientes pediátricos com insuficiência renal que recebem o primeiro transplante de rim de um doador vivo apresentam melhores desfechos do que aqueles que recebem órgãos de doadores falecidos, mostra nova pesquisa.
“Optar pelo rim de um doador vivo primeiro aumenta os anos de vida útil na maioria dos cenários; optar pelo rim de um doador falecido primeiro e reservar o doador vivo para um receptor pediátrico é preferível apenas em algumas poucas situações”, escreveram os autores em uma pesquisa publicada na última semana no periódico JAMA Network Open.
Os protocolos de alocação de órgãos frequentemente priorizam pacientes pediátricos para receber rins de doadores falecidos de mais alta qualidade. Diante da possibilidade de receber o órgão de um doador vivo (p. ex., de um familiar) alguns pacientes podem optar por reservar essa alternativa para o futuro, se valendo antes do órgão disponibilizado pelo doador falecido e então correndo o risco de possivelmente perder a oportunidade de receber o órgão do doador vivo mais adiante.
Os autores pontuaram que o acesso a diversos órgãos de doadores falecidos não compensou a perda da oportunidade de receber o transplante de um doador vivo.
“Este estudo mostrou que uma coorte pediátrica com acesso a vários rins de doadores falecidos não superaria, em média, uma coorte que também tem acesso a rins de doadores vivos”, observaram os autores.
No entanto, faltam dados sobre uma questão fundamental: receber um transplante renal de um doador vivo e mais tarde receber um transplante de um doador falecido teria algum efeito na sobrevida em longo prazo?
Transplante renal na pediatria: sequência de doador vivo–falecido
Para avaliar o problema, o primeiro autor do estudo, Dr. Bryce A. Kiberd, médico da Dalhousie University, no Canadá, e seus colaboradores avaliaram os dados do relatório anual de 2019 do Renal Data System dos Estados Unidos sobre pacientes pediátricos que estavam aguardando um transplante, haviam recebido um transplante ou tiveram falha do enxerto. Os dados de sobrevida de pacientes adultos contidos no relatório também foram analisados pelos autores.
Dois cenários foram considerados a partir do modelo de Markov, um modelo analítico de decisão. No primeiro, os pacientes receberam o transplante renal de um doador vivo sem necessidade de espera e, em caso de falha no transplante, puderam voltar para a lista de espera e obter o transplante de um doador falecido.
No segundo cenário, os pacientes que inicialmente estavam na lista de espera receberam o transplante de um doador falecido e, em caso de falha no transplante, receberam o transplante de um doador vivo em seguida. Também foi considerada a possibilidade de o doador vivo não estar mais disponível; neste caso, o paciente precisou aguardar o segundo transplante por um doador falecido.
As estimativas de anos de vida com os modelos foram avaliadas por receptores de 3, 5, 10, 15, 20 e 25 anos de idade.
Receber transplante renal de um doador vivo aumenta os anos de vida útil
Os resultados mostraram associação entre o recebimento do transplante renal de um doador vivo seguido do recebimento do transplante de um doador falecido e um aumento significativo nos anos de vida útil, em comparação com a sequência reversa, entre pacientes com cinco anos (1,82 anos de vida adicionais; intervalo de confiança, IC 95% de 0,87 a 2,77) e 20 anos de idade (2,23 anos de vida adicionais; IC 95% de 1,31 a 3,15).
Nesse ínterim, não houve benefícios significativos em anos de vida útil associados ao recebimento de transplante renal de um doador falecido seguido do recebimento do transplante de um doador vivo entre pacientes com 10 anos (0,36 anos de vida adicionais; IC 95% de -0,51 a 1,23) e 15 anos (0,64 anos de vida adicionais; IC 95% de -0,15 a 1,39).
Um dos principais motivos para o fato de o transplante renal inicial proveniente de um doador vivo não estar associado a benefícios entre pacientes de 10 a 14 anos de idade, provavelmente é o fato de esta faixa etária ter a menor mortalidade na lista de espera, especularam os autores.
“Por causa da mortalidade relativamente alta na lista de espera de pacientes com menos de 10 anos, eles são mais bem atendidos com uma sequência doador vivo primeiro”, explicaram.
Foram observadas algumas exceções em modelos de previsão ao considerar várias ressalvas.
Por exemplo, para pacientes com 10 anos de idade, receber o transplante de um doador vivo seguido de um transplante de um doador falecido era mais benéfico caso a elegibilidade para o segundo transplante fosse baixa (2,09 anos de vida adicionais; IC 95% de 1,20 a 2,98) ou o doador não estivesse mais disponível (2,32 anos de vida adicionais; IC 95% de 1,52 a 3,12)
Para aqueles com 15 anos de idade, a sequência de doador vivo-falecido era favorável caso a elegibilidade para um segundo transplante fosse baixa (1,84 anos de vida adicionais; IC 95% de 0,96 a 2,72) ou o doador vivo não estivesse mais disponível (2,49 anos de vida adicionais; IC 95% de 1,77 a 3,27)
Embora os dados não tenham permitido a análise de tendências nas preferências sequenciais, o autor sênior do estudo em tela, Dr. Karthik K. Tennankore, médico nefrologista e professor associado do Departamento de Medicina da Dalhousie University, no Canadá, disse ao Medscape que “achamos que muitos podem acabar recebendo órgãos de doadores falecidos sequencialmente”.
Os fundamentos dessas decisões podem incluir a percepção de que “é conveniente obter um órgão de doador falecido de alta qualidade logo para receptores pediátricos”.
Além disso, pode haver a crença de que “demora muito mais e a qualidade do órgão de um doador falecido será menor para um receptor adulto”.
Queda de transplantes renais de doadores vivos é maior na pediatria
Nos EUA, a taxa de transplantes renais de doadores vivos diminuiu nas últimas duas décadas, particularmente entre pacientes pediátricos, com dados mostrando que, em comparação com 2001 a 2005, a taxa de receptores de doadores vivos na pediatria foi 41% menor em 2015 a 2019, observaram os autores.
Comparativamente, os transplantes renais de doadores vivos diminuíram 27% na população entre 18 e 34 anos de idade e aumentaram 21% nos receptores maiores de 50 anos nos mesmos períodos.
Os fatores geralmente podem incluir critérios de elegibilidade mais rigorosos para doadores vivos, enquanto o declínio entre os pacientes pediátricos é parcialmente o resultado dos esforços para priorizar esses receptores para rins de doadores falecidos de melhor qualidade, especularam os autores.
No entanto, os achados em tela sugerem que essas medidas podem ter implicações negativas inadvertidas na redução dos potenciais benefícios de órgãos de doadores vivos.
“A priorização do transplante renal de doador falecido para receptores pediátricos melhorou muito a sobrevida do paciente, mas pode ter reduzido inadvertidamente as taxas de doadores vivos e os anos de vida restantes”, observaram os autores.
“A redução de doadores vivos nesta população ao longo dos últimos 20 anos teve e terá um efeito negativo significativo nos desfechos dos pacientes”, acrescentaram. “O transplante primário proveniente de um doador vivo deve ser ativamente buscado para todas as faixas etárias.”
Os autores informaram não ter conflitos de interesses.
JAMA Netw Open. Publicado em 06 de janeiro de 2022. Texto completo